quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

The New York Times: É hora de devolver Guantânamo a Cuba - Portal Vermelho

Nos dez anos desde que o campo de detenção na base naval americana de Guantânamo foi aberto, o debate angustiante sobre se a instalação devia ser fechada - ou tornar-se permanente - obscureceu uma falha mais profunda que remonta a mais de um século e envolve todos os estadunidenses: a saber, nossa própria ocupação contínua de Guantânamo. Já é mais do que tempo de devolver esse enclave imperialista a Cuba.
Por Jonathan M. Hansen* no The New York Times

NYT


Ilustração publicada no artigo do The New York Times

Desde o momento em que o governo dos Estados Unidos obrigou Cuba a nos arrendar a base naval na Baía de Guantânamo, em junho de 1901, a presença americana ali tem sido mais do que uma pedra no sapato de Cuba.

Ela serviu para lembrar ao mundo a longa história de militarismo intervencionista dos Estados Unidos. Poucos gestos teriam um efeito tão salutar sobre o estúpido impasse nas relações 
estadunidenses-cubanas quanto a devolução desse cobiçado pedaço de terra cubano.

As circunstâncias pelas quais os Estados Unidos vieram a ocupar Guantânamo são tão problemáticas quanto sua última década de atividade nessa parte da ilha. Em abril de 1898, as forças estadunidenses intervieram na luta pela independência de Cuba, que já durava três anos e estava praticamente ganha. Isso transformou a Guerra de Independência cubana no que os americanos ainda costumam chamar de Guerra Hispano-americana.

Em seguida, as autoridades americanas excluíram o Exército cubano do armistício e negaram a Cuba um assento na conferência de paz em Paris.

"Existe um rancor e uma mágoa naturais tão grandes em toda ilha, que as pessoas não conseguiram realmente comemorar o triunfo do fim do poder de seus antigos governantes", observou o general cubano Máximo Gómez em janeiro de 1899, depois que o tratado de paz foi assinado.

Curiosamente, a declaração de guerra dos Estados Unidos à Espanha incluiu a garantia de que os americanos não buscavam "soberania, jurisdição ou controle" sobre Cuba e pretendiam "deixar o governo e o controle da ilha a seu povo".

No entanto, após a guerra imperativos estratégicos tomaram precedência sobre a independência cubana. Os Estados Unidos queriam o domínio sobre Cuba e bases navais das quais pudessem exercê-lo.

Entra o general Leonard Wood, a quem o presidente William McKinley havia nomeado governador militar de Cuba, sustentando provisões que se tornaram conhecidas como a Emenda Platt. Duas eram particularmente odiosas: uma delas garantia aos Estados Unidos o direito de intervir à vontade nos assuntos cubanos; a outra dispunha sobre a venda ou arrendamento de bases navais.

Juan Gualberto Gómez, um destacado delegado à convenção constitucional cubana, disse que a emenda faria dos cubanos "um povo vassalo". Prenunciando a Crise dos Mísseis de Cuba, ele advertiu que bases estrangeiras em solo cubano só arrastariam Cuba "para conflitos não produzidos por nós e nos quais não temos nenhuma participação".

Tratava-se, entretanto, de uma oferta que Cuba não poderia recusar, como Wood informou aos delegados. A alternativa à emenda era a ocupação contínua. Os cubanos entenderam o recado.

"Existe, é claro, pouca ou nenhuma independência real deixada a Cuba pela Emenda Platt", observou Wood ao sucessor de McKinley, Theodore Roosevelt, em outubro de 1901, pouco depois de a Emenda Platt ser incorporada à Constituição cubana. "Os cubanos mais sensatos percebem isso e sentem que a única coisa consistente agora é buscar a anexação."

Com a Emenda Platt em vigor, entretanto, quem precisava de anexação? Nas duas décadas seguintes, os Estados Unidos repetidamente despacharam fuzileiros navais com base em Guantânamo para proteger seus interesses em Cuba e bloquear uma redistribuição das terras.

Entre 1900 e 1920, cerca de 44 mil americanos rumaram para Cuba, aumentando o investimento de capital na ilha de US$ 80 milhões para pouco mais de US$ 1 bilhão e levando um jornalista a observar que "pouco a pouco, a ilha toda está passando para as mãos de cidadãos americanos".

Como isso era visto da perspectiva de Cuba? Bem, imaginem que, ao fim da Revolução Americana, os franceses tivessem decidido permanecer por aqui. Imaginem que os franceses tivessem se recusado a permitir que Washington e seu Exército comparecessem ao armistício em Yorktown. Imaginem que eles tivessem negado ao Congresso Continental um assento no Tratado de Paris, proibido a expropriação de propriedades, ocupado o Porto de Nova York, despachado tropas para esmagar a rebelião de Shay e depois imigrado para as colônias aos montes, apoderando-se das terras mais valiosas.

Esse é o contexto em que os Estados Unidos vieram a ocupar Guantânamo. Essa é uma história excluída dos livros didáticos estadunidenses e negligenciada nos debates sobre terrorismo, direito internacional e o alcance do poder Executivo. Mas é uma história conhecida em Cuba (onde motivou a revolução de 1959) e em toda a América Latina. Ela explica por que Guantânamo continua sendo um símbolo flagrante de hipocrisia mundo afora. Nem é preciso falar da última década.

Se o presidente Barack Obama quisesse reconhecer essa história e iniciar o processo de devolução de Guantânamo a Cuba, ele poderia deixar os erros dos últimos dez anos para trás, sem falar de cumprir uma promessa de campanha.

Dada a intransigência do Congresso americano, não poderia haver melhor maneira de fechar o campo de detenção do que entregar o restante da base naval com ele. Isso retificaria uma agravo antigo e assentaria as bases de novas relações com Cuba e outros países do Hemisfério Ocidental e em todo o globo. Por fim, enviaria uma mensagem inconfundível de que integridade, autocrítica e franqueza não são evidências de fraqueza, mas atributos indispensáveis de liderança num mundo em constante transformação.

Certamente, não deve haver maneira mais adequada de observar o lamentável 10.º aniversário da criação do centro de detenção, nesta quarta-feira (11), do que defender os princípios que Guantânamo solapou por mais de um século. 

Jonathan M. Hansen é palestrante em estudos sociais da universidade de Harvard, é autor do livro "Guantánamo: An American History" (Guantânamo: Uma História Americana)
Tradução: Celso Paciornik

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Daniel Ortega: “Não há espaço no mundo para o capitalismo”

Eleito presidente pela terceira vez, com 62,46% dos votos, em 6 de novembro de 2011, Daniel Ortega, junto com o vice-presidente, o general Omar Halleslevens, fizeram, nesta terça-feira (10), juramento de posse para um novo mandato presidencial. Na Praça da Revolução, onde foi realizada a cerimônia, o presidente se dirigiu aos presentes e disse que nos dias de hoje o mundo clama por paz.



Foto: Divulgação
                                                                                                

Ortega (à esquerda), com Chávez e Ahmadinejad: Cerimônia de posse presidencial. 

Após a cerimônia de posse, o presidente Ortega salientou a importância da paz e lembrou uma passagem de uma música de John Lennon: “A paz com justiça, a paz com dignidade, a paz com amor, a paz com solidariedade, a paz com o cristianismo, socialismo e solidariedade”.

Destacou que uma das metas é combater a extrema pobreza, que nada mais é do que o resultado das condições estabelecidas pelo sistema capitalista na América Latina.

“Temos que nos defender da atual crise econômica, para isso precisamos nos salvar desse modelo que apenas nos impõe pobreza e trai a humanidade, optando por um modelo cheio de amor, justiça e solidariedade”, expressou Ortega.

O presidente também lembrou que os que temiam antes de 2006, quando eleito pela primeira vez, “que o retorno da Frente Sandinista [ao governo] significaria a guerra, hoje estão mais que convencidos que a guerra na Nicarágua está enterrada, e nunca mais voltará”.

Durante seu discurso Ortega tirou a faixa presidencial e disse: “Todos são o presidente, o povo é o presidente, todos os setores da sociedade nicaraguense, todos, são presidentes”.

Lembrou que o mundo hoje enfrenta uma grave crise, provocada pelo “capitalismo selvagem”. Disse que, por essa razão, “já não há no mundo espaço para o capitalismo. Temos que dizer não às aplicações de sanções econômicas, devemos lutar pela solidariedade e a cooperação, isso determinará um futuro de paz”. 

“Sim eu prometo”, disse Ortega ao jurar respeitar a Constituição da Nicarágua.

A música “Nicarágua, Nicaraguita”, uma versão gravada pelo cantor Carlos Mejía Godoy, tocava enquanto Ortega firmava seu compromisso. Logo depois abraçou sua esposa, Rosario Murillo, e saudou os presidentes Mahmud Ahmadinejad (Irã) e Hugo Chávez (Venezuela).

Luzes de refletores deram um ar colorido aos edifícios ao redor da praça, com destaque para a antiga Catedral destruída pelo terremoto de 1972 e o Palácio Nacional, com retratos dos lendários guerrilheiros Augusto Sandino e Carlos Fonseca.

Entre os presentes, teve destaque a presença do Príncipe de Astúrias, Felipe de Bourbon, o presidente da República Bolivariana da Venezuela, Hugo Chávez, o presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, o presidente da Guatemala, Alvaro Colom, assim como o presidente eleito deste país da América Central, Otto Perez Molina, Mauricio Funes, presidente de El Salvador, o presidente de Honduras, Porfirio Lobo, entre outros.

Milhares de pessoas compareceram à praça, situada próximo à Casa de los Pueblos, local que Ortega utiliza para se reunir com todos os setores do país.

Fonte: CubaDebate

Centenário de João Amazonas - PC do Brasil: das primeiras lutas à reorganização da Mantiqueira -Artigo de João Amazonas

www,grabois.org.br - Fundação Maurício Grabois

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“O Partido é como a fênix: quando se pensa que acabou tudo, ele renasce das próprias cinzas” (João Amazonas) Por ocasião da passagem de um ano de seu desaparecimento, em 27 de maio de 2003, Princípios publica trecho de depoimento inédito do dirigente comunista João Amazonas, gravados pela Comissão de Redação da História do PC do Brasil em 2001.


"Meu pai era padeiro e minha mãe, doméstica. Tiveram oito filhos. Três mulheres – as primeiras –, e depois cinco homens – sendo eu o primeiro deles. Nasci em 1º de janeiro de 1912. Tivemos uma vida difícil. Meu pai ganhava um salário e, com família tão grande, não poderia ser de outra forma. Estudávamos num grupo escolar. Meu pai morreu, num 15 de novembro. Ele estava numa cidadezinha do interior passando uns dias para ver se melhorava de saúde (tinha tuberculose). Eu e um irmão fomos fazer-lhe uma visita. Quando chegamos lá, ele já estava principiando a morrer – em umas duas horas estava morto. Foi terrível. Uma barra muito grande para todos nós. Chegou a me dizer antes, caminhando, assim, na rua conosco: “Agora você tem de assumir a chefia da casa. Você é o homem da casa.” E o que eu ia fazer? Após o grupo escolar entrei para uma escola prática de comércio, porque ensinava à noite e de graça. Eu trabalhava até as 19 horas da noite e depois freqüentava essa escola, na qual cheguei a me formar. 

As transformações democrático-burguesas começavam a entrar na ordem do dia e se refletiam fundamentalmente nas lutas que ocuparam toda a década de 1920-30. Vivendo no Pará, não fiquei ausente dos problemas e de toda essa movimentação. Começava a me interessar ainda muito jovem pelas questões sociais e políticas. O coronel Barata foi indicado interventor no Pará e fazia uma grande divulgação das propostas do governo Vargas.

Eu trabalhava numa fábrica que tinha uns 600 operários e operárias, e comecei a tomar algumas iniciativas pessoais – mas, sobre o Partido Comunista do Brasil ainda não sabia nada. Isso mostra que o Partido não tinha uma presença política no estado se não, eu teria observado de alguma forma. (À época, me parecia que Partido Comunista só existisse na Europa. Lembro-me de ter visto, aos meus sete anos, minha mãe abrir uma revista – nunca me esqueço disso – e numa das páginas tinha um bicho horrível.

Perguntei a ela: “O que é isso aí mãe?”. Ela disse: “Esse bicho está devorando a Europa.” Estava escrito lá: “bolchevismo”. Eu nunca me esqueci disso porque me impressionou, como garoto – um bicho daqueles estar devorando a Europa!).

Escrevi então uma carta para o secretário de Trabalho (a Secretaria de Trabalho havia sido criada com a revolução de 30), denunciando os abusos da fábrica e reivindicando jornada de oito horas de trabalho. Ia fazendo ações como essa por conta própria, achando que o movimento de 1930 trazia uma renovação e que a gente tinha de mudar algumas coisas.
Diógenes Arruda


Em seguida, descobri o Partido. Apareceu um livro sobre medicina e outro sobre um engenheiro brasileiro na União Soviética. Isso chamou a minha atenção para uma situação em que as coisas eram diferentes. Nessa época havia grande efervescência política em nosso país. Comecei a me interessar por esses assuntos maiores. Trabalhava todos os dias, até aos domingo pela manhã, na fábrica (de chocolates, biscoitos, doces e massas). Cheguei em casa num domingo, em abril de 1935, e como de costume fui me deitar após o almoço, já que era a nossa folga. Levei o jornal, deitei-me na rede e comecei a ler. De repente, vi: “Aliança Nacional Libertadora é comunista” – esse era o título de uma notícia sobre um comício que a ANL tinha feito no Rio de Janeiro sobre o qual havia ocorrido intervenção da polícia. Abaixo uma notinha dizia: “Hoje Comício da ANL no Largo da Pólvora, em Belém”. Desisti de dormir, botei o jornal de lado, vesti-me e fui correndo para o comício. Devia ser umas quatro horas da tarde, e lá havia umas 150 pessoas. Assim que pude, puxei o paletó de um homem que estava falando e perguntei onde ficava a sede daquele movimento. Ele me deu o endereço. No outro dia, saí da fábrica às sete horas da noite e fui imediatamente para lá. Cheguei, entrei e comecei a perguntar o que e como era aquele movimento, etc.

Encontrei o Partido. E ali apareceu acho que o Dalcídio Jurandir, um escritor interessante e um jovem combatente também. Perguntou-me se eu não queria entrar para a juventude comunista. Disse que sim, que estava lá para entrar para o Partido: “Quero ver como é esse negócio de Partido”. Passei uns quinze dias na juventude, e então eles resolveram que eu deveria entrar para o Partido, pois trabalhava numa fábrica que tinha muitos operários. Já como integrante do Partido convidaram-me para receber uma delegação da ANL que havia chegado ao Pará para fazer agitação (um jornalista e o comandante Roberto Sissom, da Marinha, eram as principais figuras). Porém, não puderam realizar nenhuma atividade, porque quando chegaram já tinham fechado a ANL.

Foi assim que eu entrei para o Partido. A Aliança teve papel na divulgação nacional do Partido, porque a própria imprensa a divulgava como uma organização comunista. E esse “comunista” chamava a atenção dos trabalhadores e das pessoas que tinham interesse numa nova vida. Desde aí passei a atuar no Partido Comunista. Até hoje. Entrei de vez, pra valer. Isso foi em abril de 1935.

No Partido, logo fui indagado sobre a possibilidade de organizar uma célula no meu local de trabalho. Respondi: “Vamos ver. Como é isso?”. Explicaram-me como era e fiquei pensando: “Nunca tinha ouvido falar do Partido e como vou saber agora quem é comunista?”. No outro dia comecei a prestar mais atenção nos operários e nas operárias que trabalhavam comigo. Alguns deles se destacavam; um era da Catalunha, o Vicente Alonso Dias – uma pessoa muito interessante. Fui até ele e perguntei: “Você não conhece um outro comunista?”. Ele respondeu: “Tem um outro companheiro espanhol muito bom”. Conversamos e decidimos ver se encontrávamos outros companheiros. Achamos uma companheira e organizamos uma célula do Partido na fábrica com uns seis ou sete membros.

Em seguida, avancei para a idéia de criar um sindicato. O Partido dizia que deveria haver organização de massa, etc; e na fábrica não tínhamos um sindicato. “Vamos ver como se organiza um”. Apoiados em nossa célula fomos trabalhando e acabamos organizando um sindicato da fábrica – uma ação importante.

Ao lembrar hoje de minha juventude, vejo que tinha muito arrojo – em tudo o que fazia. O governo começou a repressão sobre a ANL e anunciou, até mesmo, a pena de morte. Na esquina da fábrica, que ocupava quase um quarteirão inteiro, havia uma Caixa D’Água – um edifício de ferro que era o pico mais alto da cidade. Em seu topo havia um mastro em que se colocava uma bandeira brasileira em dia de festa, que era vista de toda a cidade. Falei para os companheiros: “Vamos botar uma bandeira lá” (o governo tinha anunciado que ia pedir a pena de morte para os comunistas). Mas era complicado porque havia vigias. Organizei um plano. Fui até a casa de uma companheira (que depois foi casada com o Jurandir) e pedi para ela fazer uma bandeira imensa de 12 metros, com a palavra de ordem “Viva a ANL! Abaixo a pena de morte!”. Observei a rotina do porteiro. Era ele que, no dia da festa do Círio do Nazaré, colocava uma bandeira brasileira naquele pico. A gente a podia ver de toda a cidade. Mas eu pensava: “Se botar a bandeira aí eles retiram logo”. Então, seria preciso bolar uma idéia para eles não conseguirem retirá-la. O negócio seria fazer um arranjo nas pontas onde se colocava a bandeira, com uma espécie de argola no próprio fio de arame grosso, e puxar para ficar apenas uma ponta. Fazendo 

isso eu puxaria e a bandeira iria lá para cima. Assim, não haveria como baixá-la. Como a companheira não tinha força suficiente para fazer isso, arranjamos um camarada sapateiro, que mexia com alicates e sabia cortar.

Ficamos uma noite lá, pulamos o muro alto, com a ajuda da célula do Partido, e passamos para dentro dessa Caixa D’Água. Aí fomos subindo (devia ser umas 2 horas da madrugada), mas como a Caixa D’Água ficava na área da prostituição, a região era muito movimentada. Fomos subindo, subindo, e nunca chegava o fim daquela escada de ferro – e eu com a bandeira amarrada no peito. Quando conseguimos alcançar o topo, olhamos a movimentação da área, fizemos a operação e botamos a bandeira. O companheiro sapateiro fez a argola para ficar numa ponta só e aí nós a suspendemos. Era noite e ninguém estava vendo. Fizemos tudo certo. Ainda escrevemos com piche na parede, descemos e fomos embora. Voltamos para casa completamente sujos de piche. Naquele tempo, sem nenhuma experiência, na hora de lavar as mãos, custou para sair – seria necessário usar gasolina e nós não sabíamos. Levamos muito tempo para tirar o piche.

De manhã, foi um sucesso enorme: toda a cidade despertou e foi uma agitação daquelas. Em todo lugar e nas esquinas tinha gente olhando a bandeira vermelha na Caixa D’Água. Todo mundo falava naquilo e foi engrossando aquele movimento. A excitação tomou conta da cidade. Mobilizaram bombeiros e mais o que puderam para tirar a bandeira, e não houve jeito (só conseguiram à tarde; tiveram de chamar um moleque acostumado a subir em açaizeiro). Esse fato teve uma grande repercussão. Comecei assim, fazendo uma onda que não tem tamanho!

Essas são algumas passagens dos meus primeiros tempos no Partido.

Não é preciso dizer que esse período de 1935 é um período de grandes movimentos revolucionários no mundo. E também com grandes perseguições por toda parte. No Brasil a ANL durou apenas três meses. Teve apenas três meses de legalidade. Depois foi fechada. Os comícios eram gigantescos. Comícios enormes, imensos. Exatamente por isso, o Getulio fechou a ANL. Ela tinha à frente elementos de destaque, como o comandante Sissom, da Marinha, e o prefeito do Distrito Federal, Pedro Ernesto. Em seguida cometeu-se o erro – na minha opinião – de descambar para a ação militar, de quartel, mas ainda não se havia enraizado o movimento nas massas citadinas.

Fugindo da prisão para reorganizar o Partido

Depois de uma grande atuação no movimento sindical, passado algum tempo, fui preso. Fiquei quinze dias na prisão em abril de 1935. Tive a primeira sensação da prisão: de repente você se vê dentro de uma jaula, tudo cercado com grade, tudo fechado, ali, sozinho. Ficava pensando: “Isso não pode existir. 

É um absurdo uns caras com poder para pegar a gente e botar dentro de um troço desses”. Enfim, o nosso advogado foi até lá e me soltaram. Em seguida, houve uma sucessão de prisões: fui preso, depois tornei a ser preso, condenado, fui para a cadeia e passei lá uma porção de tempo. Quando a União Soviética foi atacada pelos nazistas nós estávamos na cadeia! Fizemos então uma sessão memorável dentro da prisão – éramos uns oito ou dez companheiros – mostrando que o ataque à União Soviética era um ataque aos trabalhadores do mundo inteiro. “E nós, o que vamos fazer? Ficar na cadeia? Não, temos de sair daqui para reorganizar o Partido, para ajudar a reorganizá-lo”. E fizemos um plano de fuga muito bem construído. Numa noite a gente começou a serrar (com uma serrinha muito fina) o assoalho para passar ao porão da prisão. E em todas as noites serrávamos cada vez um pouquinho. E assim fizemos. Chegou a hora combinada. Uns saíram pela frente porque chovia. O nosso plano era sair por trás. Mas havia um cachorro que era preciso eliminar, mas não conseguíamos (colocávamos veneno na comida dele, e nada). No plano estabelecemos que o Pomar e eu iríamos ao Rio de Janeiro. Mas não havia avião. Por navio seríamos presos porque eles se comunicavam com os portos e fatalmente seríamos capturados num deles. Então, fizemos um plano mais complexo. Pomar e eu iríamos ao Rio de Janeiro, um estudante e um operário (da ParaEletric) iriam para Manaus, o Agostinho Oliveira (que depois foi deputado do Partido), para Santarém. E assim distribuímos as fugas. 

Mas tudo isso precisaria funcionar naquela noite. Havia muitos navios que saíam para o Baixo Amazonas e para a área que tínhamos de ir: por Marabá. Ia ser necessário percorrer trajetos de uma verdadeira epopéia – caminhos não dantes navegados e não percorridos, como se diz. Assim, Pomar e eu fomos numa pequena embarcação até Marabá. Chegamos lá quase sem dinheiro – tínhamos uma arma e a vendemos para um médico, nosso amigo. Foi um dinheirinho que nos ajudou um pouco no resto da viagem. Navegando com aquele motorzinho pelo Tocantins, fizemos uma viagem longa. Da cidade de Peixe, a última do rio Tocantins, não havia caminho para lugar algum. Ficamos estudando para ver como iríamos fazer: tínhamos de cruzar pelo meio da mata. Fomos ver se encontrávamos algum guia que conhecesse o caminho para nos ajudar. Descobrimos havia chegado o primeiro caminhão, vindo de Anápolis, e que iria voltar no dia seguinte. Isso resolveria o nosso problema. Fomos até lá. O caminhão levava serras e machados, porque fora fazendo a estrada naquela região de planalto. Onde havia riacho ele cortava uma árvore, fazendo às vezes um “mata-burro”; na volta, ia comprando couro. Viajamos em cima do caminhão. O volume do couro ia aumentando, e nós ficando cada vez mais altos. Num desses mata-burros, o sujeito nos avisou: “É bom saltarem todos”. E pegava do outro lado. Num deles em que o sujeito disse que não precisaríamos sair, não é que quebrou o mata-burro no meio da passagem (de quase 4 metros de altura)? E a gente lá em cima do couro! Aquilo quebrou e nós fomos entornados. Caí com a cabeça na pedra e fiquei com o pescoço doendo... 
No final, acabamos chegando em Anápolis. Ao todo demoramos um mês e tanto para chegar. Foi a nossa salvação: lá pegamos um trenzinho danado e fomos adiante.
Bancada comunista na Constituinte de 1946. Ao centro: Amazonas, Prestes e Grabois


Um mês e tanto de viagem com cenas incríveis. Nessa viagem pelo Tocantins, teve um lugar, acho que Santo Antonio, um lugar pobre em que tínhamos de esperar um outro motor que fosse adiante. E nesse local, vimos (de dentro de um quartinho que ficava de frente para o rio) os pecadores remando apressados. Havia uma gritaria na cidade, todo mundo chorando... Era um incêndio nas malocas. O Pomar e eu saímos correndo, fomos organizar o apagamento do incêndio. Pegávamos as latas que encontrávamos por lá e fizemos uma fileira de gente que ia do rio até onde estava o incêndio. 

Passávamos o balde d’água de um para outro e ele voltava vazio para o lado de lá. E foi assim que se apagou o incêndio. Foi uma tristeza, queimou todos os pertences daquela gente pobre...

Em outra sanha interessante, numa noite chovia muito e o motor parou numa praia, porque não viajava durante a noite, e o cara disse: “Vamos entrar aqui na picada, dormir na casa de uns caçadores, e amanhã voltamos”. Lá fomos... E quando chegou na casa dos caçadores havia muitos couros de onça espalhados. Perguntei: “Tem muita onça por aqui?”. E ele disse: “Tem, às vezes elas urram aqui perto mesmo”. A casa era de palha e o quarto deles era fechado, mas os visitantes, como nós, cada um montava a sua rede na varanda do lado de fora. Foi um pesadelo...

A certa altura chegamos em Carolina, que já era uma cidade mais avançada, mas era tradicional. Conversamos com certas pessoas que eram progressistas – algumas falavam na Coluna Prestes, que havia passado por lá. Um senhor de Santarém que tinha um piano velho nos disse que ele havia sido tocado pelo João Alberto, um dos comandantes, durante uma noite inteira. Ficamos lá esperando por vários dias até aparecer uma condução que nos levasse a uma cidade chamada Porto Nacional, que, por sua vez, era dominada pela Igreja, a dona de tudo. O lugarzinho onde ficamos pertencia à igreja e tinha de ser pago. E de Porto Nacional para a cidade de Peixe foi preciso contratar dois canoeiros que faziam a viagem numa canoazinha com varas. Quer dizer, eles a iam tocando com varas contra a corrente. E lá fomos assim... Até a cidade de Peixe.

Bem, de Anápolis fomos ao Rio de Janeiro em setembro de 1941. A URSS havia sido atacada em junho. Era um momento de movimentação em todo o mundo. Hitler tinha subido ao poder na Alemanha e fazia a guerra. O fascismo tomava feições muito complexas. No Brasil, tivemos páginas terríveis na nossa história. Torturas, prisões... Foi um período difícil. Duro demais. Foi bárbaro esse período. Foram anos de perseguição. Até 1941-42 ocorreu a última revoada da reação contra nós, violenta, em que prenderam toda a direção do Partido. O Prestes já tinha sido preso antes, em 1936 e, em 1939, caiu o restante da direção do Partido. Prenderam todo mundo. Pensava-se: “O que é que se vai fazer agora? O que a gente vai fazer?”. Numa situação histórica em que o Partido era mais necessário do que nunca...

Na CNOP e na Conferência da Mantiqueira

A mãe do Pomar estava morando no Rio de Janeiro. Lembro-me que ficamos uns dois dias na casa dela e começamos a nos ligar, com dificuldades, ao Partido – ali também destroçado e sob muita vigilância. Depois propus ao pessoal: “Não seria o caso de eu ir para Minas Gerais e reconstruir o Partido lá (onde o Partido tinha sido destroçado e um companheiro dirigente nosso assassinado)?”. Então fui enviado para Minas em fins de 1941, início de 1942. Passei um ano e meio em Belo Horizonte. Recebi, lembro-me bem, 200 mil réis na época (uns 200 reais de hoje). Era tudo o que tinha: uma passagem de trem e 200 reais. Se não tem Partido, e o Partido está destroçado, é uma coisa terrível...

Cheguei lá, arranjei uma pensão e paguei por 15 dias. Fui procurar e consegui um emprego. Fiquei segurando a situação dessa forma para poder reorganizar o Partido. Reorganizei-o e saí de lá já às vésperas da Conferência da Mantiqueira. Fui para o Rio de Janeiro para ficar na organização nacional.
O Partido havia sofrido uma repressão violentíssima. Fomos sendo, todos nós, presos nos estados.

Todo mundo acabou preso. Foi assim no Pará. E o Partido destroçado... A reação por toda parte. Filinto Müller tinha feito uma declaração: “Dentro de 10 anos não se ouvirá mais falar de Partido Comunista do Brasil. Está liquidado!”. E isso numa hora crucial em que a URSS estava sendo atacada pelo nazismo... Então a nossa tarefa naquele período teve muita importância: a reorganização do Partido.

Quando chegamos ao Rio de Janeiro estabelecemos contato. Era o Grabois e o Amarildo Vasconcelos, que era jornalista. O Grabois tinha saído da prisão tinha pouco tempo – havia sido condenado a dois anos e já tinha cumprido a pena. Havia ainda o Ivan Ramos Ribeiro, que era oficial do Exército (também condenado, cumpriu a pena e saiu). Então, com eles foi sendo organizada o que se chamou Comissão Nacional de Organização Provisória (CNOP), buscando contato por toda parte. Depois chegou o Diógenes Arruda, que tinha vindo da Bahia para ajudar (como não podia ficar lá foi para São Paulo). E aí nos pusemos em ação. Porque até então se aglutinavam poucos na CNOP. E nela havia um capitão do Exército, Sérgio Machado, um homem abnegado que fazia trabalho junto às Forças Armadas. Pomar e eu nos agregamos a esse trabalho. Em conjunto, discutimos a necessidade da Conferência da Mantiqueira.

Eu trazia já o Partido reorganizado em Minas Gerais; precariamente, mas reorganizado. Em Minas consegui endereços de comunistas no Paraná. O Partido me mandou então ao Rio Grande do Sul para ver se fazia mais contatos. Fui para a cidade de Alegrete para procurar o pessoal que era ligado ao setor militar (que tinha sido condenado). No Rio Grande do Sul me reuni com antigos dirigentes do Partido (o Jacinto, um intelectual, e vários outros de quem não recordo os nomes, como um companheiro que esteve na guerra da Espanha – eram dois irmãos...). Tivemos, então, uma reunião no Rio Grande do Sul e tiramos delegados para a Conferência da Mantiqueira.

Passando por Florianópolis, tive uma conversa na rua e perguntei: “Aqui teve um estivador que foi deputado federal não é?” E o cidadão me disse: “É, o Ventura; o Álvaro Ventura”. “E ele ainda existe?”. “Existe, mora ali”. E me deu o endereço. Meti as caras e fui até lá falar com ele. Perguntei-lhe se poderia participar da Conferência da Mantiqueira. Ele me respondeu: “Não posso, não há jeito nenhum de eu poder ir. Mas pode dizer ao pessoal que apóio e dentro de um mês estarei no Rio de Janeiro para ajudar”. 

Na minha passagem pelo Paraná procurei um professor de música. Tomei essa iniciativa porque havia conseguido o endereço de um companheiro de Belo Horizonte que morou muito tempo em Curitiba, conhecia o Partido e escreveu uma carta para ele. O camarada paranaense deu algumas indicações e levei dois companheiros do Paraná para a Conferência da Mantiqueira. 

Estes foram os meus passos, juntamente com outros companheiros, para fazer a Conferência da Mantiqueira – um marco na história do Partido, sem dúvida nenhuma. Um marco importante: assinala a reorganização do Partido nacionalmente e elege uma direção.

O Partido é, como se diz, como aquela ave, a fênix, que nasce das próprias cinzas. Quer dizer, quando se pensa que acabou tudo, o Partido renasce das próprias cinzas. Porque é um movimento; uma necessidade histórica. E acaba surgindo de qualquer forma, acaba se reorganizando.

Na Conferencia da Mantiqueira, eu tinha 31 anos. A gente ia até Barra do Piraí e lá pegava um carro (daqueles mais antigos do mundo) para chegar a uma cabana (antigo local de produção, que não existe há muitos anos). Ali abrigamos a Conferência. E para fazer o plenário fomos buscar uns tocos de árvore, ou o que a gente encontrasse, para se sentar, porque tinha poucas cadeiras. Acho que reunimos 20 pessoas, ou um pouco mais. Assim de cabeça, posso dizer que havia os organizadores da CNOP:

Amarílio Vasconcelos, Maurício Grabois, De Marco, Ivan Ribeiro (capitão do Exército), Julio César (que já morreu); depois, vinha o Pomar e eu (que tínhamos ido numa correria para lá). Entrava o Arruda (que tinha aderido), o Armênio Guedes (que tinha ido junto com ele) e o Mario Alves; e, ainda, dois representantes do Rio Grande do Sul (Jacinto e outro) que eu havia levado; um outro do Paraná, levado por mim, o Jorge Erlam; e de Minas Gerais havia um de Juiz de Fora, o Leopoldo. O José Medina também estava presente. Foi essa, mais ou menos, a sua composição.

A Conferência da Mantiqueira é um marco na história porque mostra a capacidade do Partido de reagir às situações mais difíceis contra a reação. Conseguimos realizar uma conferência pobre do ponto de vista material. “Conferência da Mantiqueira” é um nome pomposo, mas seu local era um barraco sem condições de habitabilidade. Ali nós tivemos de improvisar, com tijolos, pedaços de árvores, etc, o local para poder realizar a Conferência. Mas, reinava aquela alegria dos comunistas, aquela confiança no Partido e no futuro. Foi um acontecimento histórico, ninguém se preocupou com as dificuldades. Todos nós vivíamos aquele momento de intensa alegria pela reorganização do Partido. Demos início, assim, à reorganização do Partido em todo o país. Na Conferência se elegeu o Comitê Central do Partido no qual foi incluído o companheiro Álvaro Ventura (que não estava na reunião, mas estava de acordo com ela). 

E também foram incluídos o Prestes, que estava preso, e o Marighela (preso já fazia dez anos). Ali, foram eleitos o Ivan Ribeiro, o Pomar, o Mario Alves e eu, entre outros. Dessa maneira, foi criado um Comitê Central e começado um grande trabalho de organização do Partido.

Até então o Partido se organizava em alguns estados, mas tinha ainda pouca expressão nacional. O Partido ressurgiu como organização revolucionária no nosso país, e isso foi conseguido na Conferência da Mantiqueira. Nela, nós elegemos um marítimo para Secretário-Geral do Partido e a segunda pessoa vinha sendo o Arruda, o nosso Secretário de Organização. Depois, Maurício Grabois, esse companheiro Amarildo Vasconcelos e o Sergio Machado, que era capitão do Exército. O Pomar e eu também entramos. O Partido organizado é outra coisa, não é aquela organização isolada, ainda sem uma direção nacional. O papel da direção nacional é fundamental para a existência e para o desenvolvimento da luta de um Partido Comunista.

Estávamos salvos do incêndio. Quer dizer, dava para se reunir e organizar o Partido. Havia uma grande confiança mesmo. Em todo caso, o Partido mostrou que não estava afeito com o combate a pessoas, e sim preocupado com as questões maiores. O Getulio aparecia como um inimigo monstruoso, digamos assim. Mas nós, com o problema da guerra, com a Alemanha atacando a União Soviética, mobilizamos todos para ver se participávamos dessa grande luta contra o fascismo e o nazismo. Getúlio tinha mudado de posição devido ao Brasil ter sido obrigado a entrar na guerra contra o nazi-fascismo. Com isso, houve uma mudança muito grande, porque os comunistas deixaram de ser o alvo da perseguição. 

Agimos com muita habilidade, assumimos a Liga de Defesa Nacional, uma instituição histórica que existia ali na Lapa, envolvendo o nosso pessoal e simpatizantes nossos das Forças Armadas. A entidade virou um grande centro de ação política. Foi nessa época que estimulamos a mobilização contra o nazi-fascismo. Depois disso, veio a campanha da anistia e a libertação do Prestes. Houve diversos comícios e conquistamos a redemocratização do país. Fizemos um movimento popular de envergadura. E o Getulio aparecia então na direção também desse novo quadro político no Brasil. Por isso os setores reacionários das Forças Armadas não tiveram dúvida (havia o general Dutra que jogava um papel importante) e deram o golpe. O golpe retirou Getulio do governo e colocou um presidente interino. Mesmo sob restrições, o Partido viveu um período de vida legal, com ampla presença diante das massas e obteve significativa vitória eleitoral, participando da Constituinte de 1946." 

EDIÇÃO 69, MAI/JUN/JUL, 2003, PÁGINAS 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46